Abril Indígena: história e ancestralidade da coleção etnológica do MHJC

Por Guilherme Maffei Brandalise 
historiador e analista em assuntos culturais no MHJC

No dicionário da língua portuguesa, a palavra coleção é definida como “conjunto de coisas da mesma natureza, reunidas para fins de estudo, comparação ou exposição, ou apenas pelo desejo e prazer de colecioná-las”. A maioria dos museus é feita de coleções, sendo locais em que “coisas da mesma natureza”, transformadas em patrimônio, são estudadas, comparadas e expostas ao público. Quanto ao “prazer de colecioná-las”, devemos voltar no tempo até a virada do século XIX para o XX, para encontrar colecionadores que formaram gabinetes de curiosidades de história natural, porque eram entusiastas e estudiosos, mas também porque essas coleções eram valorizadas pelos museus que estavam surgindo, como o Museu do Estado, atual Museu de História Julio de Castilhos (MHJC), instituição da Secretaria de Estado da Cultura (Sedac).



Para além da definição do dicionário, uma coleção em um museu pode ter diversos sentidos e funções. Por vezes, pode conter objetos cujo significado está em camadas mais profundas de uma ou mais culturas. É o caso da coleção etnológica do MHJC, que contém mais de 900 itens indígenas, desde ferramentas de pedra de grupos caçadores coletores, machados de pedra polidos e cerâmicas monumentais, passando por cestarias e armas centenárias, máscaras amazônicas e artesanatos históricos e contemporâneos carregados de significados.

A riqueza histórica da coleção etnológica está tanto em sua formação quanto em suas possibilidades. Sua origem remonta às últimas décadas do século XIX, quando colecionadores gaúchos formaram coleções de peças indígenas a partir de várias origens: escavações arqueológicas amadoras, troca com grupos indígenas aldeados e espólios de bugreiros (caçadores de indígenas). Essas características já colocam esses colecionadores e suas coleções como parte da história dos povos indígenas do Rio Grande do Sul, e os objetos derivados, como testemunhos dessa história.

Talvez a principal coleção da época era a dos irmãos Otacílio e Arnaldo Barbedo, que coletaram 8.610 itens (!), segundo o Catálogo da Exposição Estadual de 1901. Essa feira ocorreu nos pavilhões dos Campos da Várzea (atual Parque da Redenção), onde os irmãos expuseram sua coleção em pelo menos 16 armários, divididos em artefatos etnográficos, mineralógicos, numismáticos, botânicos e mais conchas, crânios, fósseis, selos, quadros e muitas outras peças. Arnaldo, que era correligionário de Julio de Castilhos, morreu precocemente, deixando as coleções para Otacílio, que vendeu ao Museu do Estado em 20 de outubro de 1905, por 15:323$750 réis (ou mais de 15 contos de réis), uma quantia considerável para a época. Só em peças indígenas, foram 356 para o acervo do novo museu.


Entre essas peças estão artefatos arqueológicos (do passado) e etnográficos (do presente) tanto do Rio Grande do Sul quanto de outros estados. Vale destacar um colar de sementes de lágrimas-de-nossa-senhora, com outras sementes e alguns objetos “ocidentais”, como um aro de metal, o que parece ser uma pequena fivela, e um objeto em metal polido no formato cilíndrico com os caracteres “D.R.G.M. 71737”. Depois de alguma pesquisa, foi descoberto que se refere à Deutsche Reich Gebrauchs Muster, que era um sistema de registro de designs industriais no Império Alemão, e o número é de um produto patenteado em 1897. Os registros completos se perderam em 1933, porém se descobriu tratar-se de um objeto de proteção contra água com um encaixe “tipo baioneta”.

Esse colar foi doado ou vendido aos irmãos Barbedo pelo Capitão Cyrillo de Lima Pereira, que ocupava um cargo de autoridade na região de Lagoa Vermelha, no fim do século XIX. Por meio de uma troca pacífica, ou, mais provavelmente, da violência de bugreiros e militares, o capitão obteve o colar depois de 1897. Pode-se dizer isso rastreando esse objeto patenteado na Alemanha, que chegou ao Brasil provavelmente de navio, acabou na mão de um indígena Kaingang (ou Xokleng), e depois estava em posse do Capitão Cyrillo. Desses encontros anteriores não sabemos nada, mas pela história indígena da região podemos supôr que foram encontros violentos. Depois disso, o colar integrou a coleção Barbedo até 1905, quando foi vendido ao Museu.

Nos 120 anos em que o colar faz parte da coleção etnológica, já participou de diversas exposições e foi apresentado para milhares de crianças e adultos que vieram ao Museu aprender mais sobre sua história. Que história foi essa que o colar contou? Dos povos indígenas que resistiram às frentes coloniais em seu território até o século XX? Ou dos povos indígenas de um passado remoto que desapareceram? Infelizmente, por muito tempo, foi a última.

Nos últimos anos, o MHJC vem tratando de forma diferente a coleção etnológica e os povos indígenas do Estado, propondo curadorias compartilhadas e abrindo o acervo para pesquisas e consultas das comunidades indígenas interessadas. Em mais de uma ocasião, a cacica e Kujà (líder espiritual) do povo Kaingang Iracema Gãh Té veio consultar os colares que contam a história de seu povo. Aliás, foi Gãh Té quem deu o nome que marcou a nova fase da exposição do acervo etnológico: “Memória e Resistência”. No dia 28 de Abril, estreia um filme que conta com roteiro e direção de Gãh Té, no qual os colares do acervo etnológico do MHJC são personagens em sua narrativa de resistência. O filme é “Lembrem disso, minhas iambré”, e tem estreia às 19h na Sala Redenção da UFRGS.

Além de uma nova forma de contar a história dos povos indígenas do Rio Grande do Sul, a revisão da importância do acervo etnológico do MHJC traz consigo descobertas importantes para a história das ciências humanas no Brasil, da formação territorial do Estado e da formação do povo gaúcho. A trajetória de um dos vários colares antigos do acervo do Museu já conta muita coisa, mas o mais importante é reconhecer que o que sabemos é só a superfície. Existem certos aspectos dos objetos que vão além do estudo e da comparação e que pertencem ao campo da cosmologia e da ancestralidade indígena. O MHJC, como instituição pública de memória, se abre para iniciativas de reparação histórica com os povos indígenas, por meio da ressignificação do seu acervo etnológico, de parcerias em curadorias e eventos, e no envolvimento cada vez maior dos indígenas na gestão de uma coleção que é também sua.