Memória e Resistência - a potência educativa de uma exposição

Museu Julio de Castilhos, instituição da SEDAC, é assunto entre os 27 artigos selecionados da Revista Museu, no artigo escrito por sua diretora, a museóloga Doris Couto.

Abaixo, o link para acessar online e também a transcrição na íntegra do artigo publicado.

https://revistamuseu.com.br/site/br/artigos/18-de-maio/18-maio-2022/14164-memoria-e-resistencia-a-potencia-educativa-de-uma-exposicao.html


    Descobrir um museu nas suas entranhas é, ao mesmo tempo, um deleite e um susto. Foi assim que, em 2019, iniciei a experiência da gestão do Museu Julio de Castilhos (RS), instituição vinculada à Secretaria de Estado da Cultura do Rio Grande do Sul. O MJC, na minha chegada, acabara de completar 116 anos, tendo sido criado em plena Era Brasileira de Museus [2].

Sediado na casa em que viveu Julio de Castilhos, presidente do Rio Grande do Sul em 1891 e de 1893 a 1898, o Museu possui um acervo diversificado e cheio de lacunas em suas coleções, o que de certo modo é compreensível diante da inexistência de uma política de gestão de acervos vigente quando de sua criação, em 1903.

Deste modo, muitas peças ingressaram no acervo pelas mãos de seus diretores, outras chegaram com a recomendação política de que ali era seu lugar ou, ainda, um volume significativo de peças, foi deixada na porta, chegou de navio e, mais recentemente, pelo correio, sem qualquer informação ou com dados insuficientes para seu correto tratamento documental, contudo, restaram incorporadas ao acervo.

Chegou-se a musealizar, por exemplo, uma cama que havia sido destinada ao pernoite de D.Pedro II em uma viagem programada ao Sul do Brasil, que acabou sendo cancelada. Há ainda peças sobre as quais nada se sabe e cuja documentação é inexistente, como é o caso da escultura de uma santa entalhada em madeira, que pelos aspectos formais da obra e de acordo com historiadores da arte, trata-se de uma obra escultórica contemporânea.

Em que pese estes aspectos, o Museu Julio de Castilhos, a partir da criação do Museu Histórico Nacional, em 1922, e da influência que o MHN exerceu sobre os museus do país, capacitou sua equipe nos cursos de museus promovidos naquela instituição, consolidando-se como lugar de memória de destaque no Rio Grande do Sul, assim como no cenário nacional e internacional, constando, inclusive, em seu primeiro regulamento, o papel formativo e extensionista que compunham sua missão.

O MJC ganhou projeção internacional a partir das publicações que produziu. Duas delas, em especial, foram difundidas mundo afora por meio de comercialização: a Coletânea do Jornal O Povo e Coletânea de documentos sobre a Revolução Farroupilha. Esta última difundiu a versão calcada nos mitos e heróis da guerra mais longa e sangrentado Rio Grande do Sul (1835 a 1945), promovida pela insatisfação dos estancieiros e charqueadores com a política fiscal do Império, numa perspectiva de afirmação da identidade regional, onde a bravura e a defesa de ideais eram as principais âncoras, forjando uma imagem que atualmente ainda é celebrada: a de um povo aguerrido.

Nas correspondências do Museu, encontram-se cartas oriundas de vários países, cujos interessados agradecem ou solicitam o envio das publicações. O mesmo ocorreu em relação a vários outros estados brasileiros e instituições nacionais, que demandaram as coletâneas.

Quanto ao acervo Farroupilha, que subsidiou o imaginário acerca dos episódios que marcaram esta guerra, algumas peças estiveram em exposição permanente por vários anos, como o caso dos lenços que demarcam os principais pontos das batalhas, produzidos logo após o final do conflito, em edição limitada nas versões azul, verde e vermelho, tendo sido “esfarrapados” pela ação da luz. Um deles, o vermelho, sofreu ainda com a emolduração e a exposição na vertical. Todos tornaram-se peças que não podem mais ser apresentadas ao público, sob pena de seus restos se perderem.

Ao reafirmar o ideário Farroupilha e difundi-lo, o Museu Julio de Castilhos contribuiu significativamente para a consolidação da identidade proposta, demonstrando seu poder na validação desta versão dos fatos históricos transcorridos no território gaúcho, imprimindo-lhe a marca de “coisa digna” de entrar para a memória [3].

A forma como o MJC atuou a favor desta identidade sul-rio-grandense nos auxilia a pensar em seu poder institucional, uma vez que é indiscutível seu papel na educação não formal e na disseminação de narrativas que impactam além do território em que está inserido.

Mas a guarda da história regional nesta instituição, a partir dos recortes e das peças musealizadas, repercute outros fatos, como a presença dos povos originários e dos negros, em que pese, destes últimos, até pouco tempo, possuir quase exclusivamente itens vinculados à tortura dos escravizados.

Nos dois casos, no entanto, a forma em que estas peças foram expostas não teve o mesmo tratamento de destaque outorgado ao acervo Farroupilha, justamente porque este último tinha um papel identitário previamente definido, ao passo que a história da escravização e o uso do potencial de luta dos negros e indígenas na sanguinolenta guerra dos gaúchos, não interessava ser difundida.

Os discursos proferidos pelos museus constroem pontes entre o passado e o presente e se convertem em testemunho, apesar de serem versões, fazendo com que o visitante se aproprie, não raras vezes, de fatos transmitidos a partir de um ponto de vista produzido sem pesquisa aprofundada ou que, intencionalmente, oculte outros elementos de relevância, como num teatro promovido apenas com o protagonismo dos objetos.

Se por um lado há o risco de narrativas controversas, por outro, a presença de objetos testemunhais, que se comportam como fio condutor ou como dispositivo, favorece o trabalho educativo e devem ser utilizados em produções expográficas que oportunize a reflexão sobre o tema ou o fato que ali é apresentado. Seria desnecessário mencionar, mas em momentos tão conturbados como o que atravessamos, vale enfatizar o compromisso ético que devemos ter ao construir tais discursos, uma vez que quanto mais articulado ele for, maior impacto irá gerar.

Em muitos momentos dos 119 anos do Museu Julio de Castilhos, o modelo expográfico “gabinete de curiosidades” teve seu lugar, fazendo com que determinada peça fosse espetacularizada e até se consolidasse na identidade da própria instituição, como é o caso das botas número 58 de Francisco Guerreiro, gaúcho portador de gigantismo que atingiu 2,45 metros de altura e que acabou indo trabalhar em um circo no Rio de Janeiro, onde, acometido de depressão e complicações originadas da própria doença, faleceu aos 23 anos. Essa peça, exposta de diversas formas ao longo do tempo, rendeu ao MJC a alcunha de “Museu das Botas do Gigante”.

Diante deste histórico, reconfigurar suas exposições foi desafiador, tendo início com uma exposição que visava potencializar a história dos povos indígenas do RS, já que a coleção etnológica do museu é uma das maiores e bastante diversa, cuja temática se mostrava uma pauta muito necessária, como ainda o é.

A primeira decisão foi ocupar um espaço nobre do Museu para tal exposição e buscar a participação de indígenas em sua configuração. Neste primeiro momento, as trocas foram um tanto limitadas em virtude da relação recente que se estabelecia. Apesar disso, houve visita de parte da equipe a uma comunidade indígena Guarani, localizada na área rural de Porto Alegre, e a presença de lideranças e artesãs dessa comunidade em atividades articuladas a partir da Exposição, além do suporte de uma liderança espiritual Kaingang que deu nome a mostra, chamada de Memória e Resistência.

Sua abertura ao público se deu em agosto de 2019, nas comemorações do dia do Patrimônio, data mais do que oportuna para marcar a virada expográfica do Museu e apresentar a potência da cultura indígena a partir de peças, algumas com mais de 2000 anos de existência.

A recepção à exposição foi altamente positiva a ponto de, no mês seguinte, ser considerada uma das favoritas dos visitantes que responderam à pesquisa de público realizada pelo Museu.

Ainda no mesmo ano, as relações com comunidades indígenas havia se estreitado, inclusive com a realização de encontros entre lideranças e crianças indígenas com alunos não indígenas da rede pública de ensino e a acolhida de uma oficina de cestaria ministrada por cunhãs (artesãs) de uma dessas comunidades.

Memória e Resistência é, desde então, uma das principais salas de apresentação do acervo do Museu e vem obtendo grande aceitação dos visitantes, em especial do público escolar, ainda que as atividades tenham sido interrompidas por dois anos durante a pandemia.

Numa perspectiva de educação emancipadora, de respeito integral à ancestralidade e ao patrimônio material e imaterial dos povos originários, produziu-se uma exposição que é renovada a cada seis meses e que difunde essa cultura milenar, tornando-a presente e viva no Museu, acrescentando em suas últimas versões peças de povos de outros estados brasileiros pertencentes aos museus Arqueológico e Antropológico do Rio Grande do Sul.

Foco de atenção de trabalhos acadêmicos e aulas in loco do Curso de Museologia da UFRGS, essa exposição é uma demonstração de que é possível mediar a relação do objeto com o visitante de maneira que este possa, por si mesmo, refletir sobre o tema e rever pré-conceitos, reconfigurando o presente a partir da história preservada na materialidade dos objetos e na potência da substância educativa presente no museu [4].

Esse lugar, portanto, é também um lugar de poder, a partir do qual a instituição museológica proclama sua visão de mundo por meio de suas coleções, vinculando-se ou não a múltiplas possibilidades discursivas ou sedimentando narrativas hegemônicas que excluem e silenciam memórias.


Notas

[1] Mestra em Museologia e Patrimônio, Museóloga, Diretora do Museu Julio de Castilhos (2019-2022).

[2] Lilia Schwarcz (1993, p. 67), aponta o período entre os anos 1890 e 1915 como a Era Brasileira de Museus, partindo da inspiração do movimento internacional de criação de museus científicos.

[3] Coisa memorável para Joel Candau (2019, p.94) é a seleção do que será memorável a partir dos acontecimentos destacados e ordenados a partir da identidade e de referências temporais.

[4] Francisco Régis Lopes Ramos(2004,p.22) defende que o museu de história tem na ação educativa, a partir dos objetos, a possibilidade de promover a leitura dos mesmos em comparação com aqueles do uso cotidiano e de características e temporalidades diferentes, oportunizando com isso que seja lida a “história nos objetos”, partindo de objetos geradores.


Referências

  • CANDAU, Joël. Memória e identidade. Tradução Maria Letícia Ferreira.1.ed. 5ª reimpressão. São Paulo: Contexto, 2019.
  • DEBARY, Octave. Antropologia dos restos : da lixeira ao museu [recurso eletrônico]; trad. Maria Letícia Mazzucchi Ferreira. – 1. ed. - Pelotas : UM2 Comunicação, 2017.
  • RAMOS, Francisco Régis Lopes. A danação do objeto-O museu no ensino de História. Chapecó: Argos, 2004.
  • SCHWARCZ, Lilia Moritz. O espetáculo das raças: cientistas, instituições e questão racial no Brasil – 1870-1930. São Paulo: Companhia das Letras, 1993.